Banho de espuma

sábado, janeiro 23, 2010

Fome

A mim que desde a infância venho vindo
como se o meu destino
fosse o exato destino de uma estrela
apelam incríveis coisas:pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.
Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem
amaria chamar-se Eliud Jonathan.
Nesse exato momento do dia vinte de julho
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
Quero a fome.
Adélia Prado in Com Licença Poética

domingo, dezembro 20, 2009

Palavras

"Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer. Anos mais tarde, já estava doente, voltei a lembrar-me dessa nossa conversa. Tinha acabado de te escrever uma carta - mais uma, talvez a terceira - que nunca te cheguei a mandar e que destrui depois. E, escrevendo, poupei as coisas que gostaria de te ter dito e que gostaria que tivesses ouvido. Cheguei quase a convencer-me que bastava escrever-te para tu me ouvires, mesmo que nunca tenha chegado a pôr a carta no correio. Porque era tão sentido, tão distante, o que te dizia nessas cartas, que quase acredito que tu não podias deixar de me ouvir. Não é verdade, pois não? Devia ter falado contigo, mas, se calhar já era tarde, então. Já tantas coisas tinham passado pela minha vida, entretanto! A meada já era demasiado grande e longa para poder retomar o fio, onde quer que fosse. Queria que me ouvisses e que falasses comigo. Mas não te queria ver, não queria que me visses. Assim."
Miguel Sousa Tavares in No teu deserto

domingo, maio 24, 2009

Mar

"Deixa o rumor das ondas absorver o tumulto que há em ti (...). É a melhor maneira de fazer o vazio dentro de si... (...). Devemos olhar sempre para o mar. É um espelho que não sabe mentir-nos. Também foi assim que aprendi a deixar de olhar para trás. Antigamente, logo que lançava uma vista de olhos por cima do ombro, reencontrava as minhas tristezas e os meus fantasmas intactos. Impediam-me de retomar o gosto pela vida, compreendes? Estragavam as hipoteses que eu tinha de renascer das minhas cinzas (...). Quem olha para o mar, volta as costas aos infortúnios do mundo. Algures, encontro uma razão."
Yasmina Khadra in O Atentado

domingo, janeiro 18, 2009

Sublime

"Tu já não te lembras. Foi há dez anos, neste mesmo quarto, a olhar o Pico, os barcos, o azul-cinza do mar calmo, a cama por fazer, os livros e as revistas espalhadas, tu à janela, a olhar lá para fora e depois, sem pressa, num gesto pausado a camisa de alças a fugir do teu ombro, uma alça apenas, fininha, o teu sorriso a crescer e a frase
Anda, anda morder-me o coração."
Patricia reis in Morder-te o coração

(Foi por acaso que descobri este livro que se lê de uma vez só, tal é o seu encanto. Recomendo)


domingo, dezembro 28, 2008

Contemplação

Sábado, 07h30m.
Fui à janela e nevava.
Contemplei.

quinta-feira, novembro 13, 2008

Elas

"A todas as que durante séculos suportaram horas rotineiras e dias de angústia para se manterem no seu patamar.
Às que tiveram por divisa manter um horizonte justo e igualitário, iluminado pela luz da equidade, impedidas de apreciar o seu percurso e obrigadas apenas a saber que estavam no caminho.
Àquelas que travaram um combate sombrio contra quem cercou o seu ânimo, anos e anos, ferindo-se e consumindo as entranhas, mas a quem o tempo, a nobreza e a vontade acabaram por curar.
A todas as que com paciência e sabedoria viveram com a convicção de partilhar os louros com corações semelhantes.
Às que mesmo diante a morte demonstraram que tinham sido moldadas no mesmo barro que nós, os homens, ignorantes que nunca compreendemos esse momento de igualdade."

Arturo Ortega Blake in A história da Papisa Joana

quarta-feira, outubro 15, 2008

Paixão! Pedro

"Sabe que atravessou uma fronteira mas não sabe dizer qual. Se alguém lhe perguntasse faria um esforço e talvez encontrasse não a resposta certa mas uma possível que calasse a pergunta. Mas não há quem lhe pergunte. Vai até ao espelho do quarto de banho e olha a sua cara. Tão estranho ter-se uma cara. O lugar dos olhos. O desenho dos lábios. A cor da pele. Passa água fresca sobre a cara. Não se seca com a toalha que está mesmo ao seu lado direito. Continua a olhar-se com a cara molhada. O que nos une é uma mesma ignorância. É uma frase que lhe vem com frequência à cabeça nas últimas semanas."
Pedro Paixão in Rosa Vermelha em Quarto Escuro.