Banho de espuma

domingo, dezembro 20, 2009

Palavras

"Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer. Anos mais tarde, já estava doente, voltei a lembrar-me dessa nossa conversa. Tinha acabado de te escrever uma carta - mais uma, talvez a terceira - que nunca te cheguei a mandar e que destrui depois. E, escrevendo, poupei as coisas que gostaria de te ter dito e que gostaria que tivesses ouvido. Cheguei quase a convencer-me que bastava escrever-te para tu me ouvires, mesmo que nunca tenha chegado a pôr a carta no correio. Porque era tão sentido, tão distante, o que te dizia nessas cartas, que quase acredito que tu não podias deixar de me ouvir. Não é verdade, pois não? Devia ter falado contigo, mas, se calhar já era tarde, então. Já tantas coisas tinham passado pela minha vida, entretanto! A meada já era demasiado grande e longa para poder retomar o fio, onde quer que fosse. Queria que me ouvisses e que falasses comigo. Mas não te queria ver, não queria que me visses. Assim."
Miguel Sousa Tavares in No teu deserto